Feminismo na América Latina: Revindicando Território

Por Mariana Fideles e Juliana Mercuri do Obesrvatóri@ dos direitos e Cidadania da Mulher
Originalmente publicado na 4º edição da Revista Fala Guerreira

“el Feminismo no es blanco”
( O feminismo  não é branco)

Como todos os movimentos políticos, o feminismo nasce de uma necessidade. No caso, nasce das necessidades das mulheres, e portanto sua teoria e prática se desenvolve a partir das necessidades das mulheres.

A narrativa histórica do feminismo na América Latina foi realizada por mulheres que queriam fazer um contraponto à história contada pelos homens. Ao fazer a pesquisa nos deparamos com uma questão: quem foram e são as mulheres que contam essa história? O que elas contam? A historiografia feminista latinoamericana nos deixa em uma situação ambígua: se por um lado nos interessa conhecer a história das lutas das mulheres no nossa continente, por outro, também estamos reféns de nos depararmos com a seleção de fatos e registros organizados por mulheres majoritariamente brancas e burguesas.

A história “oficial” produzida pelos homens e brancos, contada através de publicações nas universidades omitem propositalmente a participação de não brancos e mulheres. O esforço de apagar a história dos oprimidos é uma estratégia permanente de poder utilizado pelo patriarcado ocidental branco. A imposição do silêncio é sem dúvida uma das grandes violências da dominação masculina branca europeizada, que além de violentar os corpos com seu comportamento genocida, aniquila também qualquer modo de viver e ver o mundo que não seja o seu. É o que se chama epistemicídio, provocar a morte de outros conhecimentos e maneiras de conhecer o mundo.

Sabemos também que mulheres brancas e de classe alta são em todo o continente quem ocupam predominantemente os espaços acadêmicos de produção de conhecimento. Ao enfrentarem os homens para ocuparem o meio acadêmico com seus corpos e suas narrativas, produziram e ainda produzem teoria e análise política feminista da “Nossa América”. Geralmente, escolhem dados e fatos para seus trabalhos que, mesmo realizado em contraposição daqueles produzidos pelos homens, refletem o ainda atual racismo e classismo presente no feminismo e na academia.

O que isso quer dizer? Que quando pesquisamos feminismo latinoamericano nos deparamos quase sempre com narrativas feitas por mulheres brancas, de classe alta e intelectuais carregadas de valores dos poderes dominantes. A partir de seu lugar na sociedade acabaram criando uma ideia de mulher que construiu um imaginário de mulher latino americana que não corresponde às múltiplas realidades e experiências de ser mulher neste território. São os reflexos do que chamamos de feminismo hegemônico.

Sabemos que o feminismo hegemônico contribui para o avanço em direção a equidade  dentro do sistema masculino dominante, mas isso não significou dignidade plena para as mulheres, menos ainda para mulheres que sofrem também opressão por sua raça e classe.

Presenciamos uma vez e outra vez mais a dinâmica de uma cadeia de silenciamentos: homens brancos que silenciam homens não brancos e mulheres. Mulheres silenciadas pelos homens; E mulheres brancas tomando as vozes de mulheres negras e indígenas e impondo-se como representantes de todas as mulheres.

Então, para falarmos da história do feminismo latino americano podemos falar também de um feminismo hegemônico, de uma narrativa só, que pretende ser oficial. Aqui contaremos rapidamente essa história porque ela também é parte do feminismo na América latina, fazendo sempre a ressalva de que não contempla o bem viver de todas as mulheres do continente. Destacaremos vertentes do feminismo latino americano que estão ativos atualmente, mas que não podemos afirmar ainda quando começaram a entender-se como movimentos políticos. As origens desses movimentos são e serão contadas pelas suas ativistas e teóricas de acordo com suas necessidades. Historicamente as universidade e instituições não foram espaços ocupados por feministas latino americanas indígenas, negras, lésbicas e transexuais, reproduzindo uma história única. Formatar trajetórias políticas em publicações acadêmicas, políticas institucionais e ONGs – espaços de poder – parece ser o formato adotado pelo feminismo hegemônico para legitimar-se como um movimento aglutinador de todas as mulheres.

Em toda a América latina a luta por direitos civis e legais das mulheres durante as décadas de 1910 a 1940 foi pragmática: articularam-se respostas aos ataques antifeministas dos homens que se assustavam pelos seus ideias, tentaram e conseguiram a reforma dos códigos civis para superar a subordinação legal das mulheres ao pai ou ao esposo, obter igualdade civil com os homens e fundaram partidos abertamente feministas. A maioria das analistas feministas da América Latina concordam que entre as décadas 1940 até 1970 foram “anos adormecidos” para o movimento feminista e o feminismo teórico latino americano.

Nesse período da história regional as lutas sindicais nas quais as mulheres estavam envolvidas minguavam; o sufragismo já não tinha razão de ser, a moda massiva impôs padrões; a política voltou a bases mais conservadoras, e as mulheres dos setores populares sofriam com as repressões de seus movimentos. Apesar desta atuação contida durante esses anos, a literatura produzida por mulheres latino americanas dessa época questionou a cultura e descrevia violências e opressões, enumerava injustiças, renegava o dever de ser feminino.  Vítimas ou heroínas, as personagens de escritoras reinventaram narrativas ao apresentar interesse pelo cotidiano, as rebeliões ocultas, as solidariedades interclassistas e interraciais entre mulheres.

No fim da década de 1970, o feminismo na América Latina juntou mulheres ao redor de um projeto que se opunha ao autoritarismo na vida cotidiana e na vida política e revindicava uma identidade feminina. Explorou a liberação do corpo e se multiplicaram os grupos de autoconsciência, as organizações de mulheres, as publicações libertárias e coletivas nos espaços autônomos e outras formas de resistência.

Durante três décadas, o feminismo latino americano foi se diferenciando, fortalecendo seu poder de romper, fazendo emergir a voz de mulheres lésbicas e periféricas, às políticas de identidade negra e indígena. Propuseram outro projeto para as mulheres: já não a emancipação pela lei, senão a liberação sexual, teórica, política, corporal de suas vidas. Mulheres de diversos lugares de fala no território – se fizeram com a palavra para expressar posições claramente diferentes sobre a política das mulheres e para as mulheres, provenientes de diálogo entre sí. Se essa diversidade não for respeitada corremos o risco de reproduzir uma história única, a de um só feminismo Latino Americano e também hegemonista, aniquilando outras territorialidades.

E agora?

Acreditar na superação do modelo de sociedade vigente é uma escolha política de potencial revolucionário. Os feminismos latinos americanos que lutam contra o patriarcado, também lutam para contar a experiência de grupos de mulheres que foram silenciados pelo feminismo hegemônico.  Essa reivindicação por falar de si desde de um lugar pode ser interpretada também como uma reivindicação pelo território. O território é o lugar onde vivemos, onde pensamos e criamos significados para nós mesmas e para o mundo do qual fazemos parte. É o lugar da nossa experiência, e por isso ao reivindicar o lugar de onde pensamos e falamos de nós mesmas, também reivindicamos o território. O corpo também é território. Os feminismos que apresentaremos evidenciam territórios profundos, que se integram, sobrepõe, negam e superam o território único, que recebeu do colonizador o nome de América Latina.

  • O Feminismo desde Abya Yala: Abya Yala é o nome pelo qual os povos originários chamam o território que conhecemos como América Latina. Umas de suas manifestações é o Feminismo Comunitário. Através do território abya yala existem diversas adaptações dessa prática e teoria feminista, modelada pelos valores dos diversos povos indígenas. Um de seus aspectos centrais é concepção de organização social onde a comunidade é formada metade por homens e metade por mulheres:  “A negação de uma das partes atenta também contra a existência da outra. Submeter à mulher a identidade do homem, ou vice e versa, é cercear a metade do potencial da comunidade, sociedade ou humanidade. Ao submeter à mulher, se submete a comunidade porque a mulher é a metade da comunidade e ao submeter uma parte da comunidade os homens se submetem a si mesmos, porque eles também são comunidade.” (PAREDES, 2010). Propõem outro projeto de socialização a partir desse entendimento. Este feminismo rejeita a ideia de que antes da colonização não havia dominação dos homens sobre as mulheres e afirma que o processo colonizador combinou estruturas de dominação das sociedades que já ocupavam o território com a dominação patriarcal do colonizador, vulnerabilizando duplamente a condição das mulheres. O pensar desde si proporcionou a esse feminismo um marco conceitual próprio que corresponde aos valores culturais dos povos indígenas

http://www.iconoclasistas.net

Infográfico La Trenza Insurrecta produzido pelo coletivo Iconoclassistas, que apresenta fatos da história da resistência indígena e a participação das mulheres

  • LesboFeminismo A sexualidade da mulher foi questionada pelas feministas que nomearam em feminino os alcances e limites de uma revolução sexual postulada pelos homens progressistas. A análise do corpo e da sexualidade das mulheres por mulheres, armadas de especulações próprias e do próprio direito de nomear sua experiência, revindicando em o próprio corpo como território em si, rompendo com a ideia de sexualidade vinculada a reprodutividade e propondo a separação do gozo sexual das alianças sexo-afetiva. O Lesbofeminismo é uma proposta teórica e prática que aporta o entendimento da heterossexualidade como um regime político e não como uma expressão da sexualidade ou prática sexual. A partir dessa análise se construiu o conceito de heteropatriarcado que faz referência ao fato de que o sistema patriarcal se sustenta mediante a heterossexualidade. O Lesbofeminismo retoma conceitos e aportes do feminismo lésbico branco ocidental, porém realiza uma revisão crítica a partir do contexto Abya Yala, pelo qual diversas autoras incorporam uma análise não colonial, antirracista e classista.


https://lolaperla.carbonmade.com/projects/5175292
Performance Sigo Viva…Cuidado!!! da artista mexicana Lola Perla

  • Feminismo Negro Nasce na falta de espaço da mulher negra dentro do movimento feminista hegemônico e do próprio movimento negro, fazendo a sua intersecção de sujeito mulher e negra. No Brasil tem a sua constituição simbólica no I Encontro Nacional de Mulheres Negras, ocorrido em 1988, com a presença de aproximadamente 450 mulheres, marcado também pelo centenário da abolição. Tem como condição não desvincular a prática da teoria, somando a produção de conhecimento (intelectual e acadêmico) e participação ativa em movimentos sociais. Em suas narrativas destrói as ideias masculinas e brancas de corpo-servil e corpo-sem mente que atingem a sua condição de mulher negra. Propõe uma nova forma de pensar a sociedade a partir desse lugar que ocupa, que experiência opressões que interseccionam gênero, raça e classe, o que lhe conferem potenciais inegavelmente revolucionários.

Cartaz do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras

Referências:

Francesca GARGALLO, “Teorías y prácticas feministas en Nuestra América”, conferencia leída en el Aula Magna de la Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Universidad Nacional de Cuyo em :

https://francescagargallo.wordpress.com/ensayos/feminismo/no-occidental/teorias-y-practicas-feministas-en-nuestramerica/

GARGALLO, Francesca, “Las diversas teorías y prácticas feministas de mujeres indígenas”, conferencia leída para la presentación del libro Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América, de Francesca Gargallo (Ed. Desde Abajo, Col. Pensadoras latinoamericanas, 2012, 295 pp.,  ISBN 789588454597), en la Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia, Tunja, 5 de septiembre de 2012.

https://francescagargallo.files.wordpress.com/2014/01/francesca-gargallo-feminismos-desde-abya-yala-ene20141.pdf

BRITTO, Clovis Carvalho. A organização das feministas negras no Brasil, Núbia Regina Moreira. Cad. Pagu,  Campinas ,  n. 38, p. 433-440,  June  2012 .

Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332012000100016&lng=en&nrm=iso.

access on  05  Feb.  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332012000100016.

 

 

 

 

 

 

 

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *