Um rio sem margem

Juliana Mercuri

Há momentos do passado que nos visitam no presente. A cada visita experimentamos sensações já conhecidas, seus significados se confundem e se desdobram, e pode ser que não cheguemos a conclusão definitiva sobre o que eles realmente representam. Me visita a cada tanto, esse momento de três horas e meia que é o que dura a travessia de Belém a Marajó.

***

Presença

Enquanto eu tomava um tacacá e várias cervejas, um amigo novo disse que queria voltar para o Marajó. Eu queria ir, mas não sabia o caminho e decidi acompanhá-lo. Dois dias depois a gente pegou o barco no porto Belém. Embarcamos depois da chuva de todo dia que dá nessas latitudes, mas as nuvens carregadas ainda não tinham ido embora. E não foram. Sentei no barco com a minha mochila e meu parceiro se sentou logo atrás de mim. Ele riu do escuro do céu, deitou e dormiu.

O barco zarpou e começou a balançar. Chovia forte, chovia na Selva. Me acomodei no banco.Tinha uma mulher na minha frente e outra meu lado. O vai e vem estava intenso e busquei o horizonte para não me marear. Depois de um tempo, a luz diminuiu e a chuva rapidamente mostrou que era Tempestade Tropical. Eu tentava olhar pra frente, mas o barco mergulhava no marrom profundo da água do rio e logo em seguida decolava em direção ao céu embolado de cinza. Primeiro o rio depois o céu, um e outro, pra cima e pra baixo. Tinha momentos que as ondas vinham de qualquer lado, o ritmo se perdia, parecia que o barco, ironicamente caia de barriga num baque seco e que a madeira gemia de dor.

Bem mais que medo. Minha boca abriu quando perdi de vista o pedaço de terra do qual eu tinha partido. Além da água que caia, um rio assim sem margem, eu nunca tinha visto. Aquilo era grande demais. Era enorme, dava uma espécie de cegueira atrás dos olhos. Não existe nada mais arrebatador que a Natureza se manifestando nos nossos sentidos. Esta sensação de sentir ela imensa, se mexendo com força no seu próprio tempo. Esse movimento poderoso que faz o corpo sentir a certeza de que é Natureza e que a realidade parece ser só um aspecto do presente.

Minha mãe me disse uma vez que achava que o vento faz a gente se sentir presente. E no caminho de ida para o Marajó, ventava muito. Eu balançava arrebatada, tudo se mexia dentro e fora de mim. Me sentia presente, mínima e inteira no tempo real de norte imenso. Nessa paisagem eu vi os olhos bem abertos da mulher que tava na minha frente e, pouco depois, encontrei também o olhar da mulher que estava meu lado.

De mãos dadas

A gente só começou a se falar mesmo quando a mulher que tava do meu lado teve um reflexo de susto, e pegou a minha mão. Nos olhamos com alívio, ela me pediu desculpa e eu respondi que tava morrendo de medo. Imediatamente, a mulher na nossa frente virou, e num só movimento de corpo, pegou nossas mãos. Ela falou que também estava assustada, que já tinha pegado viagem ruim, mas que aquilo ela nunca tinha visto.

A mulher que tava do meu lado concordou e disse que fazia a travessia do Marajó a Belém todos os dias, que tava acostumada a tempo ruim, mas aquilo tava demais. Ela contou que ia pra Belém ver a filha que estava internada num hospital da cidade. Partia no primeiro barco do dia, e quando o horário de visita acabava ela voltava pra casa. Eu perguntei o nome dela, ela disse “Pâmela” e eu disse o meu nome também. A Pâmela continuou falando, disse que a filha dela estava reagindo bem ao tratamento, e que ela tinha outro filho. O menino fazia desenhos para irmã ausente, ia sozinho para escola e era o melhor da classe. Os brincos de argola grandes que ela usava balançavam intensamente enquanto ela falava

A mulher na nossa frente se chamava Cristiane. Ela me disse que viu minha tatuagem e, sem soltar as nossas mãos, mostrou as que ela tinha: O nome da mulher e da filha, “uma em cada braço”. Ela disse que criança dava mesmo trabalho, mas que ser mãe era tudo nessa vida e que valia muito a pena. Sua filha, na verdade, era filha de uma tia que tinha filhos demais pra cuidar e ela e a companheira dela decidiram criar a menininha. Contou que as três passeavam na moto de muitas cilindradas que elas tinham, que iam visitar a família de uma e de outra em várias partes da Ilha. Ela e a namorada iam também de moto pras festas e esperavam amanhecer pra ver melhor as poças de lama na estrada de volta para casa. Ela disse que era festeira, mas que só bebia mesmo cerveja.

Aí elas perguntaram da onde eu vinha, se eu tava passeando, se eu tava sozinha. Eu respondi que eu estava viajando, que era de São Paulo. Que estava ali pra conhecer o Norte. Elas me olhavam e eu senti que deveria continuar falando. Acabei dizendo que estudava geografia, e achava importante conhecer outros lugares, que gostava de aprender coisas. A cada palavra eu me esvaziava um pouco mais. Um das coisas que eu penso quando esse momento me visita é que eu queria ter dito só meu nome. Aliás, são muitos os momentos em que eu queria que o meu nome fosse a única coisa que soubessem de mim.

Oração

Nossas mãos se soltaram porque o balanço mudou de ritmo e jogou cada uma pra um lado. O rio e o céu continuavam revoltados e tudo estava muito molhado. Se equilibrando, a Cristiane estendeu a mão de novo e sugeriu uma oração. Uma Ave Maria. Eu não achei ruim a ideia porque queria mesmo que alguém tivesse olhando por nós. Elas começaram a rezar e eu balbuciava pra disfarçar que não sabia a oração. A Pâmela errou umas palavras e parou, a Cristiane percebeu, mas continuou concentrada, até o fim.

Se segurando com força ficamos em silêncio quando ela acabou. Eu sentia a Pâmela apertando minha mão quando ela disse que sua família era católica, mas que o marido era “da igreja” e que fazia tempo que não rezava uma Ave Maria. A Cristiane riu nervosa e disse que só rezava quando a coisa apertava mesmo, que sabia que tava mal, mas que tinha um monte de coisas da religião que desconfiava. Que se fosse pelos padres “que são padres mesmo”, ela não teria a família que tanto amava.

Eu disse que tinha sido batizada na igreja católica, mas que passava com um guia de umbanda que minha avó me levava. Também contei que minha avó me ensinou muitas vezes o Ave Maria, mas que com o tempo eu fui confundindo as estrofes até esquecer as frases. A Cristiane disse que também rezava com a avó dela. Enquanto ela falava eu lembrei que na casa da minha avó a gente rezava logo antes de dormir, que ali tudo era cálido e seguro, e isso me deixou feliz.

Balançando ao som da tempestade, a gente falou das nossas avós e de outras coisas que nos fazem sentir um tipo de saudade.  Nesse movimento, de mãos dadas, olhos nos olhos, eu já nem sabia mais como passava o tempo. Quando a gente está presente, tomando rajada de vento na cara, o tempo não tem nada a ver com o que marca o relógio.

Sentitempos

Mais para o fundo do barco, um senhor baixinho com a camisa aberta ligou um rádio a pilha que era potente o suficiente para se ouvir no meio da aguaceira.  O velho que tava com uma mão segurando o rádio e a outra o banco, ria alto e as pessoas riam dele. Lembramos que tinha mais gente no barco e olhamos em volta. Atrás de mim tava meu amigo, que continuava dormindo, abraçado ao banco. A gente riu dele. Por uns segundos, a música pareceu harmonizar o caos das águas e a tempestade pareceu diminuir.

Ainda de mãos dadas, a Cristiane disse que ia a uma festa de Melody no sábado. A Pâmela disse que o irmão dela organizava festas de aparelhagem na Ilha, mas ela não ia muito porque depois o povo fazia fofoca na igreja e a confusão se armava. A Cristiane disse que detestava isso, que alguém sempre via alguma coisa que caia na boca do povo. O povo tem mania de cuidar da vida dos outros.E nós concordamos que principalmente da vida das mulheres

Cuidar da vida dos outros. Contamos histórias que tinham acontecido com a gente, detestamos os algozes e experimentamos as pequenas vitórias umas das outras quando alguém concluía a história com uma boa volta por cima. Contei uma coisa que tinha acontecido comigo e enquanto eu falava eu percebia que aquilo tava muito longe de mim, bem lá atrás no tempo, que tinha um lugar para aquela história, naquela hora. A gente ia falando de coisas assim e tinha pedaços da conversa que eram sobre sentimentos, mesmo que nem tão secretos e nem tão profundos. Dá para saber se tem sentimento numa conversa quando ela se desenrola misturando o passado, o presente e o futuro. E não importa muito a linearidade da narrativa, o adjetivo e nem o verbo exato. E se tem vento, a gente acaba entendendo tudo.

No fim das contas concordamos que seria bom se as pessoas se cuidassem mais entre elas. Que talvez, essa coisa de cada um cuidar do seu, era um mal que resultava em egoísmo e crueldade. Concordamos também que na maioria das vezes, quando alguém cuidava da vida dos demais, cuidava das coisas erradas. Íamos revezando a palavra, uma ia falando, as outras duas concordando, até lembrarmos juntas que tem muita gente boa no mundo. Falamos das pessoas assim que a gente conhecia, demos muitas voltas em histórias de esperança e ficou parecendo que queríamos acreditar que o mundo ia ser um lugar melhor. A Pâmela riu e disse que tanto balanço tinha deixado à gente maluca.

Terra à vista.

De uma hora para outra, a luz do fim do dia entrava no barco, que deixava para trás a nuvem negra que jorrava. Tudo ia ficando mais tranquilo, mas ainda se ouviam os interiores da tempestade. O velho apagou o rádio, o colocou de lado e, botão a botão, foi fechando a camisa. O horizonte finalmente apareceu para separar o céu da água e os passageiros contemplavam a paisagem, aliviados.

Continuava ventando forte. O barulho do rio e da chuva se juntaram num só e eu notei por primeira vez o ruído de motor. Finalmente, apareceu a outra margem do rio e dava pra ver a saúde das arvores. Chegando mais perto eu percebi que eram gigantes, de braços abertos, de todos os verdes. Na medida em que nos aproximávamos eu percebi que elas, como um todo,  também emitiam som.

Já era quase noite quando as luzes do porto apareceram e as pessoas se organizavam para desembarcar. A Cristiane perguntou meu telefone e passei contente enquanto eu anotava o dela também. A Pâmela prendeu o cabelo de novo e retocou o batom num espelhinho de bolsa.  O barco aportou e os passageiros desceram rindo do velho que perguntava que lugar era aquele, que dizia que tava perdido, que os miolos dele tinham caído na água. Só lembrei do meu amigo quando já estava em terra firme e vi ele descendo a rampa com cara de sono.A Pâmela foi embora acenando pra mim enquanto caminhava na direção do marido que a esperava no porto. Me despedi da Cristiane e dissemos coisas bonitas uma pra outra enquanto nos abraçávamos. Meu amigo me chamou de longe assinalando uma van que ia para o Soure e eu lembrei que a viagem até lá não tinha acabado.

***

Como tantos outros momentos que nos visitam, esse que relatei não tem um final extravagante, nem ensina uma grande lição. Às vezes, quando ele aparece, quero dar-lhe um significado definitivo, concreto, mas ele se esfumaça e vai embora. É como se em cada visita, eu acabasse atribuindo-lhe um significado novo, vendo nele um reflexo do que estou vivendo e tentando espremer dele alguma resposta.

Não sei ao certo o porquê esse momento me faz tantas visitas, mas intuo que cada vez que ele vem experimento de novo a sensação de deslocamento. Deve ser por isso:  é de sua natureza se mover no tempo e no espaço. Um deslocamento é um movimento que a gente faz em relação ao todo, que fazemos por inteiro. É, sobretudo, um movimento da percepção. Um deslocamento nos redesenha, como se uma borracha apagasse os contornos do nosso eu, ao mesmo tempo que um lápis desenhasse as novas margens do mapa do nosso mundo. Querendo ou não, depois de um deslocamento, a gente se encontra em outro lugar no mundo e no tempo. Sua potência reside justamente na possibilidade de conhecer outra escala, outras histórias para o mundo e para nós mesmos. Talvez esse momento me visite ainda por muitos anos e que dure a vida toda a tarefa de decifrá-lo. E quando me dou conta dessa possibilidade, desfruto ainda mais de suas visitas.

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